segunda-feira, 7 de outubro de 2013

questão existencial

Ás vezes, quando olho para um desnutrido - e quando me morre um desnutrido nas mãos - paro e um pensamento, uma recordação remota, salta de uma qualquer gaveta fechada da memória:
- há crianças que sofrem por obesidade no mundo...


...
Como?

[dói-me na consciência, tenho dito]

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

bless the rains

Hoje até podia falar da fome que as pessoas começam a sentir nesta época por aqui, ou descrever as crianças que me têm chegado ao Centro nutricional, ou, pior, tentar capturar fotos dignas de Kevin Carter, mas como estou consciente dos motivos que o levaram ao suicídio, prefiro apreciar a chuva e deixar uma música ambiente adequada para a abençoar.
As meninas assim que ouviram trovoes dizeram: ih, o ano está a ultimar.. em breve vao semear o milho e o ano termina :)

sábado, 28 de setembro de 2013

um anjinho que fiz nascer

Há meses atrás, estava na sala de partos, num dia cansativo, a delegar o ultimo de trâs partos daquela manhã numa assistente de serviço sem conhecimentos na área. Acabei pro ceder aos pedidos das mamãs acompanhantes e assisti o parto.
-Força Mamã, força!
- é menino, e muito bonito.
- é bonito? Vai casar contigo.
-ai sim? Que bom! E posso escolher o nome do meu noivo?
-claro!
-Raul. [porque Raul foi um grande homem, que me inspira.. afinal, se não fosse ele eu não estava aqui agora. A prenda que lhe dou é um shará]
Hoje, fui até à casa desta mamã, descalcei, entrei, ajoelhei-me junto dela e, debaixo da capulana que lhe cobria o rosto molhado de lágrimas, ela ouviu, novamente, agora num tom magoado entre lágrimas:
- Força mamã, força…

É que esta criança também era minha filha…

quinta-feira, 13 de junho de 2013

De enfermeira-parteira a escuteira


Decidi entrar de folga hoje mesmo, às 7h30, só porque me apeteceu, e.. vá, porque a minha bicicleta foi emprestada. Digamos de passagem que depois de por 5 crianças no mundo nos últimos dois dias, está na altura de descansar e pensar um pouco nas que já cá estão – nomeadamente nos desnutridos. Deixar de ser enfermeira, ou “parteira” e voltar a ser a escuteira empreendedora, onde as amarrações não faltam. Resultado: um lava-loiça genuíno e uma machamba plantadinha de fresco. Um sorriso lindo do Óscar, que já começa a brincar com uma bola e a dar chutos, sem ainda sequer se aguentar nas pernas de pau, e que mexe o rabo ao som de uma música que lá o cérebro lhe canta, sem conseguir ainda dar um passo [eu sempre disse que estes negros aprendem a dançar ainda antes de aprender a andar: aqui está a prova].


terça-feira, 4 de junho de 2013

Querida Lamparina, troquei-te por uma vela



Gostava de vos contar cada hora dos últimos 5 dias... é que cada hora foi mais intensa do que a anterior... na 6ª um parto pré-termo (27 semanas) e o dia preenchido a cuidar daquela vida 60 vezes mais leve que eu: a ponderação entre aliviar o sofrimento daqueles recém-pais que não têm com certeza mais de 18 anos e ajudar a pequena a viver – cada respiração, cada batimento cardíaco foi uma vitória… são estes pequenos seres humanos que me ensinam a lutar, são eles que me fazem sonhar com a criação de uma neonatologia no Niassa [o meu patrão Follereau dizia que não há sonhos grandes de mais, por isso deixem-me sonhar!].
Depois outro dia, o da criança, vivido de forma tão intensa por todos que me questiono porque raio não fui eu criança em Moçambique. Mas não faz mal, elas deixaram-me ser, deixaram-me participar no seu almoço – um almoço literalmente partilhado: tiras uma garfada de comida do teu prato e dás-me uma grafada da tua comida, como forma de desejar boas festas: resultado: o meu prato que tinha duas assas de frango tem agora arroz branco, arroz amarelo, arroz vermelho, feijão, chima, couve, massa, esparguete, bolacha Maria, bolo frito, e mais outras coisas indecifráveis. Se apanhar uma diarreia, pouco me importa, hoje somos todos crianças!
Deitei-me feliz. 4h da manha o guarda começa no seu tom grave “dá lecensa, dá lecensa?” penso de mim para comigo, entre algum sonho: mas será possível que este bêbado me está  a esta hora a mandar fechar a janela? – o típico, nele. E ele insiste: “dá lecensa? Mama Irene chama” – Ok, levanto-me a correr e cubro-me com uma capulana – penso logo que algum dos meus meninos do centro nutricional está mal. Não, afinal é só um rapaz, que trouxe a sua dama para parir e encontrou a maternidade vazia. Pego na bicicleta e faço o percurso típico com um quarto de luar minguante a iluminar-me. É só uma primigesta bem atrasada, volto para os meus lençóis [vá, admito que tenho um pouco de medo de andar a altas horas da noite sozinha pelo mato africano, mas dizem que aqui não há leões nem elefantes]. Perante um parto arrastado, decido ficar a próxima noite e prenoitar ali mesmo. A maternidade agora é só minha. E faço um parto à luz das velas J

domingo, 26 de maio de 2013

conversas com as Angel's - uma Questão de Cor



CONVERSAS COM AS ANGEL’S – UMA QUESTÃO DE COR
Há umas boas semanas atrás:
- hoje veio pessoas visitar escola.
- Ai sim? Quem foi?
- Eram pessoas como a Fátima: mulheres brancas e usavam calças.
- E as mulheres brancas são bonitas?
- Não!
[se não querias ouvir a resposta, não perguntavas…]

A semana passada:
- Hoje veio homem vender macaco às irmãs. Macaco era branco, como a Fátima…

Hoje:
[bombando tranquilamente água para levar aos porcos, as Angel’s falavam em macua, num sossego de dominical pós-missa. Apercebo-me que a conversa incidia nas minhas pernas, que estavam ousadamente a descoberto até ao joelho – um perigo numa sociedade maoritariamente muçulmana]
- o que têm as minhas pernas?
- Nada [respondem envergonhadas a esconder uma vontade enorme de me traduzir as suas conversas]
- Vá, digam lá…
- Pernas da Fátima parece porco.
[se não querias ouvir a resposta, não perguntavas. Ponto (revi as minhas pernas e de facto não são da cor-de-pele habitual por aqui, são mesmo aquele rosa-descorado-cor-de-porco!)]