domingo, 26 de maio de 2013

conversas com as Angel's - uma Questão de Cor



CONVERSAS COM AS ANGEL’S – UMA QUESTÃO DE COR
Há umas boas semanas atrás:
- hoje veio pessoas visitar escola.
- Ai sim? Quem foi?
- Eram pessoas como a Fátima: mulheres brancas e usavam calças.
- E as mulheres brancas são bonitas?
- Não!
[se não querias ouvir a resposta, não perguntavas…]

A semana passada:
- Hoje veio homem vender macaco às irmãs. Macaco era branco, como a Fátima…

Hoje:
[bombando tranquilamente água para levar aos porcos, as Angel’s falavam em macua, num sossego de dominical pós-missa. Apercebo-me que a conversa incidia nas minhas pernas, que estavam ousadamente a descoberto até ao joelho – um perigo numa sociedade maoritariamente muçulmana]
- o que têm as minhas pernas?
- Nada [respondem envergonhadas a esconder uma vontade enorme de me traduzir as suas conversas]
- Vá, digam lá…
- Pernas da Fátima parece porco.
[se não querias ouvir a resposta, não perguntavas. Ponto (revi as minhas pernas e de facto não são da cor-de-pele habitual por aqui, são mesmo aquele rosa-descorado-cor-de-porco!)]

sábado, 25 de maio de 2013

Entre o pó da estrada



De regresso de Abdul e uma noite dormida em Mississi numa “residencial” na qual constantemente receava a entrada de ratos no quarto, e cuja cama se desfez ao longo da noite [juro que nem me mexi no colchão, as tábuas do estrado é que, uma por uma, iam caindo], de uma viagem entre estradas de pó e margens de capim, macaquitos que teimavam em atravessar a estrada e ladainhas aos carros que se me atravessavam à frente iniciadas com “caraças mas não sabes…” e ficava por aí que ao meu lado o referendo rogava em macua protecção divina para a viagem, desafiei as crepitações da estrada em terra batida com uns loucos-furiosos 80kms/hora [se morrer seguro-me à batina do padre e vou direitinha para o céu].
Enquando regressava, lá me pediram o favor de vir mais devagar, que na caixa aberta os saltos sentem-se a dobrar e o santo fica melindrado. Aceitei a proposta, e o efeito foi bonito: tanto as crianças como os adultos com quem cruzava pelo caminho, muitos deles muçulmanos, assim que o carro passava voltavam-se para trás e ficavam de boca aberta. As crianças, assim que me viam ao volante, gritavam “mucunha [branca]” mas depois o carro passava e o silêncio era completo – em segundos deixava eu de ser o centro das atenções. O que trazia eu no carro? Única e simplesmente a imagem de S. José, que pelo espanto que produzia nas pessoas, acreditei por momentos que o próprio Santo estava ali de corpo e alma, e não apenas um pedaço de barro bem trabalhado. “ É boneca de Jesus” disseram algumas crianças, mais pequenas que o próprio santo, quando este, farto de tanto solavanco e de tanto pó, desceu do carro.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Do Centro de Nutrição



Quero apenas partilhar convosco que a criança desnutrida que ontem e hoje me vez sair dos lençois antes das 6h da manhã e andar para um lado e para outro com preparações de F75, está finalmente a tolerar a dieta… Espero sinceramente que sobreviva [ainda ontem, enquanto conversava tranquilamente com os colegas do hospital acerca dela, me diziam: se os pais querem sair do centro e ir para o tratamento tradicional, deixa ir, porque senão ela morre ali e depois tens chatices]… Mas quê, a minha persistência [eufemismo de teimosia], não me deixa parar de lutar por aquela criança de 2 anos que pesa 6 kg. Não estou a brincar, existe mesmo.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Era uma vez uma tetraciclina oft.



Passo a explicar o motivo de presentemente não ter tetraciclina oft. na maternidade: No outro dia, entre muitas das consultas matinais, vem uma senhora para consulta pós-parto fora da maternidade. Pego no seu caderno e começo a escrever tudo direitinho, sem sequer prestar atenção ao novo ser. Olho então para ele e a minha alma dá um salto [não posso confirmar se o meu corpo foi atrás, mas penso que sim]: uma cegueira congénita do olho esquerdo. Revolto-me sinceramente: porque raio é que não temos testes de sífilis para fazer no pré-natal? Lá pego no pequeno ao colo e começo a minha peregrinação típica, sem dar muita importância à mamã que está na sala de parto: Vou à Pediatria, onde está o enfermeiro de formação e enfermeiro-médico-dentista-técnico-de-laboratório-cirurgião e tudo o que possam imaginar, e lá confirmo o diagnóstico de sífilis com ele. Volto para junto da mãe, pego na única tetraciclina oft. da maternidade e ensino a mãe a colocar à criança, fazendo uso dos meus melhores conhecimentos de macua. Depois, uma voltinha à farmácia para saber se posso prescrever tetraciclina. Posso. Volto para a sala de consultas e ouço um grito de dentro da sala de partos. Lá vou eu a correr, deixando um xarope e a tetraciclina em cima da mesa. Calço um par de luvas descartáveis [que acabaram as esterilizadas e até pode nem ser nada de especial], quando me deparo com metade da criança já nascida. Desta vez não tenho mesmo ninguém para ir chamar alguém. Mas cortar um cordão umbilical, verificar o globo de pinard e tirar uma placenta não custa assim tanto, quando se sabe o que se está a fazer [está claro que eu não sabia tirar a placenta, e assim, quando tudo estava estável, chamei alguém com conhecimentos práticos para o fazer]. Quando voltei à sala de consultas, a mamã tinha ido embora com a criança cega, com um frasco de antibiótico e com a tetraciclina oft. da maternidade, e eu não cheguei a registar no seu caderno o estado geral do RN. Está explicada a falta da tetraciclina. Até amanhã.

domingo, 5 de maio de 2013

Feliz dia da Mãe



No outro dia, enquanto bombeava água do furo e a trazia em baldes para o quarto, pensava tranquilamente em algo que, se pudesse trazer de Portugal, me resolveria todas as tarefas duras que por vezes tenho de fazer. Pensei em torneiras de onde saia água, em electricidade que me chegue ao quarto, num ferro de engomar eléctrico, uma máquina de lavar roupa, num frigorífico, num esquentador que aqueça água … Tudo isto seria bom, mas a falta de qualquer uma das coisas nunca iria cobrir a falta da outra. Então, milagrosamente descobri algo que solucionaria tudo. Querem saber? A minha mãe! Ela seria perfeitamente capaz de pegar nos baldes de água, pô-los à cabeça [que não custa tanto como carrega-los à mão… bom, eu já tentei com o balde meio-cheio, mas as angel’s começam logo a rir-se de mim e eu desisti antes de tomar um banho em pleno pátio], ela pediria ao meu pai para passar um fio subterrâneo pelo pátio e assim poderia ter electricidade no quarto, ela saberia perfeitamente regular o carvão no ferro e passar a roupa sem a queimar nem deixar restos de carvão na roupa, e entre isto, muita outra coisa. Digam o que dizerem, as mães são sempre heroínas [e a minha é ainda mais!]

quinta-feira, 2 de maio de 2013

É fácil nascer



Eu juro que não fiz de propósito para assistir o parto de um menino sozinha... É que não estava mesmo ninguém na sala de partos... bom, estar estava: um enfermeiro simpático e muito pachorrento, que quando lhe disse claramente e um pouco irritada “eu não sei fazer um parto sozinha!”, ele, calmamente responde “tudo bem, vou chamar a enfermeira” [nesse momento, a enfermeira estava tranquilamente no seu quintal a dar banho ao filho, ou a amamenta-lo, ou a lavar a roupa ou lá o que seja, porque pouco me importa]. E assim nasceu um belo rapaz, nas mãos de uma enfermeira mais nervosa do que a própria mãe.
No final do turno, fui ter com a mãe, e perguntei-lhe: “sina bebé?” que é como quem questiona em macua o nome da criança. E assim cometi a minha 9x10asneira cultural!