terça-feira, 23 de abril de 2013

Malária, esse Bode Expiatório



No outro dia assisti à seguinte consulta de um jovem estudante no Centro de Saúde:
- Preciso de medicamento para malária.
- Como sabes que tens malária?
- Sinto uma malária muito forte.
- Mas o que sentes?
- Dói-me o corpo todo.
- E tens tido frio? [ter frio = febre]
- Não, só tenho uma malária que me faz doer o corpo todo. [e, baixinho, acrescenta] e comichão.
- Comichão onde?
- Aqui. [diz rapidamente, sem apontar para sitio nenhum]. Preciso de medicamento para a malária.Tenho malária muito grande.
- Comichão onde, mesmo?
- Aqui
[na realidade o que o moço tinha era uma IST]

Para evitar estas coisas de culpar a Malária de todos os males, resolvi dar uma “aula” às minhas Angel’s acerca de febre.
-Sabem o que e isto? Um termómetro. E para que serve?
- Para saber se pessoa está doente. Por debaixo do braço, esperar e depois ler se está muito doente ou pouco doente.
Lá expliquei o que é um termómetro e o conceito de temperatura e de febre. Esforcei-me por deixar bem claro que febre não significa malária necessariamente: afinal era esse o meu objectivo com estas explicações todas. Sugeri que experimentassem colocar o termómetro, a mais pequena não quis, tinha medo que se descobrisse alguma doença, mas a mais velha, mais corajosa, colocou o tal aparelho na axila. “36,5ºC. Não está doente!”
- Então vamos ver na B.
- 39,2ºC
- o que significa?
- Tem malária!
[definitivamente não sou boa professora -.-‘ ]

domingo, 21 de abril de 2013

Conversas com as Angel's


- É verdade que tu saber conduzir carro?
- Sim, é verdade.
-Ah... a Marta disse que viu tu a conduzir carro e eu dizer que é mentira. [olhar envergonhado] E consegues carregar pessoa no carro?
- Consigo. Queres que te leve um dia a passear? Amanhã estava a pensar ir até Congerenge.
- Eu já foi a Congerenge!
- Ai sim?!
- E já foi a Namicoio. Agora falta conhecer Lichinga, Maputo, Portugal e Angola!
- Tchii! Falta-te conhecer muito pouco para conhecer o mundo todo!
- [sorriso envergonhado, como se tivesse ouvido a verdade mais verdadeira.]
 

Como o mundo de uma criança, que nem sabe a própria idade, é fácil e pequeno!

sexta-feira, 19 de abril de 2013

A Felicidade, segundo Tolstoi


"Passei por muita coisa na vida e agora penso que encontrei o que é necessário para a felicidade. Uma vida tranquila e isolada no campo, com a possibilidade de ser útil à gente para quem é fácil fazer o bem e que não está acostumada que o façam; depois trabalhar em algo que se espera ter alguma utilidade; depois descanso, natureza, livros, música, amor pelo próximo - essa é a minha ideia de felicidade. E depois, no topo de tudo isso, tu como companheira, filhos, talvez - o que mais pode o coração de um homem desejar?"

terça-feira, 9 de abril de 2013

E a Pitiria veio ao mundo.



Hoje, terça-feira, início de semana em Moçambique, porque ontem celebrou-se o dia-depois-do-dia-da-mulher-moçambicana (que quando um feriado calha ao fim-de-semana, a 2ª é folgada. Queriam, não queriam?!). Na chegada ao serviço, vejo a amiga M., aquela senhora da limpeza, com uma cara de sofrimento: “hoje estou muito mal, dor de barriga. Enfermeira fazer partos hoje”. Vamos a isso. Fardo-me a correr e vou observar as duas parturientes: uma primigesta, que iniciou o TP em casa e, devido recomendações menos saudáveis, trás o períneo numa miséria, e outra, que consultei na 6ª feira, com a criança à minha espera para nascer. Calço luvas e “força mamã” (aqui toda a mulher é chamada de mamã)… Como se fosse a coisa mais natural do mundo, recebo nas mãos a criança mais linda que podem imaginar (mesmo mesmo a MAIS LINDA!... estão a ver a bebé mais linda que já viram? Esta era bem mais linda...) tão fácil (tirando a circular à volta do pescoço, mas que não causou problemas), e, ao mesmo tempo, tão único. Uma menina, não muito revoltada com o mundo, só chorou mesmo para que eu não me preocupasse com ela, nascida “para a eterna novidade do mundo”. Envolvo a criança numa capulana, e, para cortar o cordão, à falta de pinças, o improviso fala mais alto… Já pensaram que aquele rebordo grosso de uma luva de látex é forte o suficiente para fazer um garrote num cordão?! Eu aqui estou sempre a aprender…
Gostava de ficar um pouco mais com a criança, mas depois dos cuidados essenciais, volto para as consultas de saúde materna, onde mal sei que 37 mulheres me esperam para serem atendidas naquela manhã (malditos feriados e malditos fins-de-semana!). No meio das consultas, a mamã que deu à luz vem ter comigo: a criança chama-se Pitiria, e vão para casa entretanto [e eu nem uma foto tirei, nem trouxe a roupinha que tinha reservada para o meu primeiro parto! :( … Fica prometido que sempre que vierem ao hospital me mostram a pequena]. Entre umas consultas e outras, falta-me um papel e procuro no armário… uma aranha semelhante aquelas que aparecem nos programas da National Geographic, enorme, às bolinhas brancas, passeia pelos papeis que estão no armário; sinto pulsar veneno dentro dela [não me venham cá dizer que estou feita ocidental, mas quê, não gostei da presença daquele ser vivo ali]… fica prontamente decidido que não irei precisar de nada do que está no armário. Às 3h da tarde, termino finalmente as consultas. A primigesta em TP foi transferida para Mandimba, aqui não conseguiríamos resolver a situação; e eu, na minha bicicleta, transfiro-me para casa. Primeiro banho, depois almoço. Faço um pouco de ricoffe (o mais parecido com café que tenho à disposição), e vou bebé-lo para o pwarô. A meio do meu “café”, aparece o amigo L., um leproso, a quem tenho feito tratamento de uma úlcera. Lá largo o café a meio e trato do assunto. Termino o café, vou buscar água ao furo, uma barra de sabão e toca de lavar a farda, que amanhã é outro dia de trabalho, e daqui a pouco aparece a menina da conjuntivite para lhe por tetraciclina.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

É fácil morrer


Desde que me sentei na cadeira da maternidade estou “habilitada” a fazer diagnósticos, inclusive médicos. É certo que ao início custa, mas com o passar dos dias e discussões de cada caso com activistas e auxiliares, lá me tenho desenrascado. A manhã de hoje teria tudo para ser calma: 10 consultas pré-natais, 3 consultas pós-parto [todos partos fora da maternidade], mandar embora umas poucas de senhoras do planeamento familiar porque não há anticoncepcionais, um bebé com infecção respiratória e uma senhora em início de trabalho de parto. Para o caso de uma senhora a quem diagnostiquei mastite-assustadora, lá peguei na bicicleta e, escolhendo cuidadosamente o carreiro da estrada em que a terra está mais batida [que o resto é areia e aí a bicicleta não anda] e rezando a todos os santinhos para que as cabras não se me atravessem nessa pequena porção de terra batida [que não tenho travões e não desejo colidir com caprinos] vim a casa buscar antibióticos, que a farmácia do hospital só tem CTZ e paracetamol. Entretanto, não havendo mais grávidas, sentei-me no alpendre, com a colega e uma louca [em África, uma “louca” é facilmente identificada pelo cabelo: não está entrançado e adquire aquele aspecto “afro”, muito apreciado no mundo ocidental]. Nisto, surge uma senhora numa mota, com uma criança em neneca, bem protegida do sol com capulanas. Então a senhora trazia uma preocupação: aquela criança nascera ontem, em casa [calo a minha consciência quando se põe a pensar em condições de higiene, que casa aqui significa palhota], e a mãe da parturiente achava que a criança não estava bem, pelo que a trazia para ser observada… e toca de tirar a criança da neneca e tirar capulas. Sai uma capula, e saí outra e aparece uma capulana bem embrulhada [pergunto-me como a criança respira], e tira outra capula, e tira um cobertor, e o embrulho das capulanas já é tão pequeno que considero que a senhora se esqueceu da criança em casa… mas não, ali estava ela, uma criança minúscula, do tamanho do chinesinho mais pequeno que vi na neonatologia em Macau.  Muito frio apesar de todas as capulanas e da temperatura ambiente rondar os 30ºC, com uma FR de 2/min, mais coisa menos coisa, pulsação complicada de sentir, preenchimento capilar muito difícil por todo o corpo, no entanto, aparentemente sem cianose [ou então sou eu que não sei identificar cianose em prematuros da raça negra], meti-o ao colo, e pus as mãos por cima dele, a tentar aquece-lo, enquanto procurávamos formas de salvar aquela pequena vida. Podemos hidratar e dar algum soro glicosado, calculamos primeiro as necessidades hídricas e depois damos. Temos CVP pequeno? – Não, só de adulto; podemos tentar  dar um pouco de leite por copinho, a mãe vai chegar quando? – Há-de vir. Temos oxigénio? – Risos. O que foi? Nem uma botija?? – Nada [c'est pas possible! Então a boticha de oxigénio mais próxima está a 45minutos, qqr coisa como, no mínimo, 1h daqui]. O desfecho está-se mesmo a ver… tive de fazer o pior diagnóstico possível… apesar de a mãe ter chegado em pouco tempo, senti a última ventilação poucos segundos depois. Vi duas lágrimas a correr no rosto da jovem mãe: as únicas lágrimas que foram vistas, porque, agora, todo o ritual do “falecimento” será feito com uma capulana a cobrir-lhe a cabeça. Por vezes, temos mesmo de deixar a natureza seguir o seu caminho...