quarta-feira, 3 de abril de 2013

É fácil morrer


Desde que me sentei na cadeira da maternidade estou “habilitada” a fazer diagnósticos, inclusive médicos. É certo que ao início custa, mas com o passar dos dias e discussões de cada caso com activistas e auxiliares, lá me tenho desenrascado. A manhã de hoje teria tudo para ser calma: 10 consultas pré-natais, 3 consultas pós-parto [todos partos fora da maternidade], mandar embora umas poucas de senhoras do planeamento familiar porque não há anticoncepcionais, um bebé com infecção respiratória e uma senhora em início de trabalho de parto. Para o caso de uma senhora a quem diagnostiquei mastite-assustadora, lá peguei na bicicleta e, escolhendo cuidadosamente o carreiro da estrada em que a terra está mais batida [que o resto é areia e aí a bicicleta não anda] e rezando a todos os santinhos para que as cabras não se me atravessem nessa pequena porção de terra batida [que não tenho travões e não desejo colidir com caprinos] vim a casa buscar antibióticos, que a farmácia do hospital só tem CTZ e paracetamol. Entretanto, não havendo mais grávidas, sentei-me no alpendre, com a colega e uma louca [em África, uma “louca” é facilmente identificada pelo cabelo: não está entrançado e adquire aquele aspecto “afro”, muito apreciado no mundo ocidental]. Nisto, surge uma senhora numa mota, com uma criança em neneca, bem protegida do sol com capulanas. Então a senhora trazia uma preocupação: aquela criança nascera ontem, em casa [calo a minha consciência quando se põe a pensar em condições de higiene, que casa aqui significa palhota], e a mãe da parturiente achava que a criança não estava bem, pelo que a trazia para ser observada… e toca de tirar a criança da neneca e tirar capulas. Sai uma capula, e saí outra e aparece uma capulana bem embrulhada [pergunto-me como a criança respira], e tira outra capula, e tira um cobertor, e o embrulho das capulanas já é tão pequeno que considero que a senhora se esqueceu da criança em casa… mas não, ali estava ela, uma criança minúscula, do tamanho do chinesinho mais pequeno que vi na neonatologia em Macau.  Muito frio apesar de todas as capulanas e da temperatura ambiente rondar os 30ºC, com uma FR de 2/min, mais coisa menos coisa, pulsação complicada de sentir, preenchimento capilar muito difícil por todo o corpo, no entanto, aparentemente sem cianose [ou então sou eu que não sei identificar cianose em prematuros da raça negra], meti-o ao colo, e pus as mãos por cima dele, a tentar aquece-lo, enquanto procurávamos formas de salvar aquela pequena vida. Podemos hidratar e dar algum soro glicosado, calculamos primeiro as necessidades hídricas e depois damos. Temos CVP pequeno? – Não, só de adulto; podemos tentar  dar um pouco de leite por copinho, a mãe vai chegar quando? – Há-de vir. Temos oxigénio? – Risos. O que foi? Nem uma botija?? – Nada [c'est pas possible! Então a boticha de oxigénio mais próxima está a 45minutos, qqr coisa como, no mínimo, 1h daqui]. O desfecho está-se mesmo a ver… tive de fazer o pior diagnóstico possível… apesar de a mãe ter chegado em pouco tempo, senti a última ventilação poucos segundos depois. Vi duas lágrimas a correr no rosto da jovem mãe: as únicas lágrimas que foram vistas, porque, agora, todo o ritual do “falecimento” será feito com uma capulana a cobrir-lhe a cabeça. Por vezes, temos mesmo de deixar a natureza seguir o seu caminho...

1 comentário:

  1. Fátinha do Sr. Manel * Estive a ler o teu blog :) És um orgulho para a enfermagem! Muita força e muita sorte*

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