8h17
da manhã. Dirijo-me de bicicleta até ao pátio dos visitados. Chego e desço da
bicicleta.
-“odi,
odi” [dá licença]
Alguns
olhares tiram-me todas as medidas possíveis e imaginárias, sem uma única
palavra. Dou uma olhadela pelo quintal. Uma velhinha, de rabo para o ar, varre do chão as folhas caídas da mangueira,
com um molho de ramos secos em jeito de vassoura. Dois patos e uma galinha
pavoneiam-se pelo quintal acabado de varrer, picando aqui e ali algum insecto
agora descoberto, vão depois molhar a goela numa bacia com água esquecida perto
da cozinha. Na cozinha outra mamã retira da panela raízes de mandioca acabadas
de cozer, com movimentos lentos, num ritual observado por mais de meia dúzia de
crianças que se batem na esteira, rindo. Vem um homem, ainda jovem mas com
certeza já pai de família, traz uma cadeira de plástico e convida-me a sentar.
Agora
na cadeira de honra e com o dono da casa sentado num saco de farinha vazio,
cuja cor se confunde com a terra em que repousa, inicia-se o ritual de
saudação.
-
Como está?
-
Estou bem, não sei como está.
-
Ah, aqui tudo bem…
-
Hum-hum
-
Hum-hum
Questiono
pelos membros do grupo que teriam supostamente sido convocados para uma reunião
naquela casa.
-
Mas ainda não chegaram.
Tudo
bem. Estou de férias e tirei a manhã para isto. Aprecio de novo a dinâmica da
casa. A mamã que se ocupava da mandioca pega nuns copos de vidro e mergulha-os
na bacia de água esquecida, onde antes os patos saciaram a sede. Começo a temer
o pior… copos de vidro num ambiente destes é mau presságio, e estas crianças
aqui ao lado, sentadas na esteira em vez de estarem a dançar atrás de uma
árvore, e nenhum dos membro do grupo ainda presente… Sim, cheira-me a potencial
diarreia se não inventar rapidamente uma desculpa.
Não
estava enganada. Não tardou que uma menina me trouxesse um púcaro de água cor
suspeita e duas formigas a boiar. Tento averiguar se porventura é chá, mas não
está a vaporear, pelo que muitas E.Coli vivem contentes e felizes
naquele púcaro, em harmonia com os seus familiares e amigos. Entregam o mesmo
ao papá sentado no saco de farinha. Os meus neurónios percorrem todas as
mentiras possíveis e imaginárias para não beber aquela água, enquanto aguardo
calmamente sentada na cadeira por algum gesto do papá. Vem de novo a menina,
com um prato tapado com outro prato e o tal copo de vidro com sumo TANG de pó.
Respiro de alívio quando vejo que se trata de mandioca cozida e não xima com
peixe seco do rio intragável. Autorizada pelo papá, e quando as crianças ao lado
também já foram servidas, lavo as mãos com a primeira água [seria quase pecado
não lavar as mãos, mesmo que lavar signifique, perante esta água, conspurcar-las] pego numa raiz de mandioca e como, tirando alguns grãos de terra
facilmente identificados, mastigando aqueles que não deu para separar.
Entretanto, seguindo as leis da lógica, presumo que a água laranja a que se
chama sumo foi, antes, igual à água que serviram para lavar as mãos, pelo que
vou procurando mentalmente uma desculpa para dar quando me alertarem para o
facto de ter um copo de sumo à frente e não lhe ter tocado.
-
Irmã, esse sumo aí. Não está a beber.
-
Sabe, de manhã eu não costumo beber líquidos.
Já
está. É uma desculpa estranha, mas com certeza não tão estranha como a cor da
minha pele.
Só para concluir, sobrevivi a mais esta.
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